Hoje se encerrou o primeiro dia do XXXVII Congresso Brasileiro de Direito Tributário, organizado pelo IDEPE, cuja plateia é formada preponderantemente por advogados tributaristas. E eu, membro de um fisco estadual, me senti quase uma “estranha no ninho” ali, e achei isso ótimo.
Explico.
Todos temos uma tendência natural a “puxar a brasa à nossa sardinha”. Todos.
Advogados tributaristas serão tendentes a levantar e defender teses jurídicas favoráveis aos contribuintes, assim como auditores-fiscais serão naturalmente tendentes a defender a Fazenda Pública.
O que não podemos perder de vista, é que para melhor desempenhar nosso papel, expor-nos ao “contraditório” é essencial. É por isso que gostei tanto de ouvir as palestras de hoje, mesmo que em várias delas os argumentos trazidos não tenham sido suficientes pra tirar aquela “pulguinha teimosa” detrás de minhas orelhas.
Ouvi, por exemplo, o Dr. Ives Gandra mencionar que a Emenda Constitucional nº132/2023 trouxe ao Brasil a figura do semifederalismo, argumentando que a autonomia financeira de Estados e Municípios foi ferida, em razão de não deterem mais, no IVA-Dual, a competência legislativa aplicável a ICMS e ISS.
Enquanto o ouvia, não pude deixar de pensar que a Constituição Federal instrumentalizou a autonomia financeira tanto por meio da competência tributária, quanto por meio das transferências vinculadas, evidenciando que o objetivo maior é outorgar ao ente federativo recursos financeiros para execução das políticas públicas.
Nessa linha de raciocínio, e sobretudo considerando uma quantidade considerável de municípios no país que não geram receita própria alguma, e executam suas políticas com recursos exclusivamente oriundos de transferências, não ter competência para estabelecer regras quanto aos tributos cuja receita lhe cabe, realmente feriria sua autonomia financeira?
Passeou na minha cabeça, ainda, o quanto a guerra fiscal do modelo atual corroeu a base tributária, essa sim, ferindo de morte não só a harmonia entre os entes, como suas finanças. Não seria esse o verdadeiro ataque político sistemático ao federalismo?
É óbvio que não se responde a questões como essas com “achismos”. E obviamente não haverá uma resposta exata para o confronto de uma questão tão complexa. Haverá linhas de raciocínio.
E considerando que, como já dito, somos naturalmente tendentes a nos associar a argumentos relacionados com a nossa realidade de trabalho (defender o contribuinte ou defender o erário), ao formular uma tese, é essencial que nos exponhamos aos fundamentos da antítese.
Numa outra palestra, chamou minha atenção a análise do advogado Marcelo Salomão sobre a ADC 49 e os dispositivos normativos publicados depois do julgamento para regular o tratamento tributário a ser dispensado nas transferências interestaduais de mercadorias.
Me alinhei a seu raciocínio em várias críticas à omissão da Lei Complementar 204/2023 em delimitar a identificação do crédito a ser transferido, em definir o tratamento a ser dispensado em operações envolvendo benefícios fiscais como isenção e crédito presumido ou sujeitas à substituição tributária. De fato, a reserva constitucional à lei complementar impede que quaisquer dessas questões, relacionadas ao regime de compensação, seja regulada por meio de Convênio do CONFAZ, o que deixa auditores-fiscais e contribuintes num mar de incertezas quanto à conduta a ser adotada.
Todavia, quando a argumentação adentrou a seara da faculdade ou obrigatoriedade de transferência dos créditos de ICMS nas transferências interestaduais, os argumentos começaram a se chocar com algumas de minhas convicções. “Onde está escrito que a transferência do crédito é obrigatória?”, perguntou ele. E a resposta automática na minha cabeça foi: no § 4º, I, trazido pela LC 204/2023, quando determina que o crédito das operações anteriores será (e não “poderá ser”) assegurado pelo Estado de destino.
Mas aí lembrei da palestra do professor Humberto Ávila, em que ele citava que quando uma mãe diz ao filho choroso com o joelho ralado que “ele não vai morrer”, há uma mensagem implícita e não dita expressamente: esse ferimento não é grave.
E por que correlacionei as duas palestras? Porque talvez o pensamento que me veio à cabeça para responder à pergunta retórica do Dr. Marcelo Salomão seja apenas um reflexo do meu pouco conhecimento acerca de hermenêutica jurídica, dado que eu não sou advogada. O que me fez deixar isso anotado como um ponto que eu preciso estudar mais.
Mas voltando à questão das transferências, há um segundo aspecto sobre a suposta faculdade na transferência de créditos mencionada no relatório do julgamento da ADC 49, e defendida na palestra, que me fez aproveitar o coquetel ao fim do dia para procurar o palestrante e tentar resolver minha inquietação…
O que eu perguntei a ele foi o seguinte: dado que o julgamento da ADC 49 não adentrou a questão do federalismo fiscal, adotar a tese de que a transferência não seja obrigatória não feriria o pacto federativo e autonomia financeira dos Estados, na medida em que o efeito direto disso seria o contribuinte passar a ter o poder de escolher para que Estado pagar o tributo e, a depender da logística eleita e dos benefícios fiscais aplicáveis, não pagar a ninguém?
A pergunta rendeu uma boa conversa e essa é uma questão que, provavelmente, ainda veremos ser enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal. Neste ponto, se eu fosse apostar minhas fichas, apostaria que a tese da faculdade será derrubada.
Mas perceba que essa aposta não se balisa naquela tendência natural de puxar a brasa pra sardinha do fisco. É que ao pensar na interpretação dos princípios constitucionais de uma maneira harmônica, não vejo como garantir a não-cumulatividade (cujo direito do contribuinte eu não discuto) sem ferir o pacto federativo e a autonomia financeira dos Estados, senão pela obrigatoriedade dessa transferência.
Certa ou não nesse raciocínio, a minha premissa inicial, de não me limitar a ouvir somente àqueles com quem eu concordo, foi muito válida no dia de hoje.
Os exemplos que citei acima foram apenas dois, dos muitos insights obtidos ouvindo a juristas como Roque Carrazza, Sacha Calmon, Everardo Maciel e vários outros.
Esse confronto entre o que defendem os juristas e a prática diária de minha atividade fiscalizatória me fez perceber vários pontos de melhora nos procedimentos, de forma a mitigar a tal tendência pró-fisco do auditor-fiscal, já que, na verdade, nós temos o dever de sermos isentos e promovermos a justiça fiscal.
Por outro lado, não se deve perder de vista, durante a construção desse posicionamento isonômico, o dever de prover o Estado com os recursos necessários à execução das políticas públicas. É uma “linha do meio” nada fácil de ser encontrada, mas cuja busca deve ser incessante.
Mas se você não é do fisco, eu concluo propondo a você um raciocínio diferente: talvez eu não esteja correta nas reflexões trazidas com cunho mais estatal, é fato. Mesmo assim, se você é um advogado tributarista ou contador, é salutar que você confronte suas teses tributárias. Teste a força do seu argumento. Veja se ele é bom o suficiente e tem potencial para sobreviver e triunfar.
E como você faz isso? Exponha-se às críticas de quem não concorda com você. Porque se você só ouve aqueles com quem concorda, está fadado à ignorância!
Eliane Heidemann – Fiscal na SEFAZ/AP